sábado, 30 de maio de 2015

EDUCAÇÃO EM SAÚDE




A gente ensina, você aprende: ênfases prevalentes na educação em saúde A familiaridade com que se continua acolhendo programas e campanhas de educação em saúde como essa anunciada pela frase-síntese que instiga este artigo indica que, apesar de todas as críticas já produzidas sobre esse modo de fazer 1,2,3,4,5,6, ainda não estamos diante de algo que perturba ou desacomoda o que se tem dito e feito em termos de educação em saúde, no Brasil. Os projetos educativos em saúde seguem sendo majoritariamente inscritos na perspectiva de transmissão de um conhecimento especializado, que “a gente detém e ensina” para uma “população leiga”, cujo saberviver é desvalorizado e/ou ignorado nesses processos de transmissão. Assume-se que, para “aprender o que nós sabemos”, deve-se desaprender grande parte do aprendido no cotidiano da vida. O processo sintetizado acima, com uma certa ironia, pode ser melhor entendido se considerarmos que as práticas sanitárias que ganharam hegemonia ao longo do século XX fundaram-se na afirmação da objetividade, da neutralidade e da universalidade do saber científico e nos modelos clássicos de explicação do processo saúde-doença, pressupostos que sustentam a prescrição de comportamentos tecnicamente justificados como únicas escolhas possíveis para o alcance do bem-estar de todos os indivíduos, independentemente de sua inserção sócio-histórica e cultural. Por esse caminho, foi incorporada à nossa cultura sanitária a suposição de que comportamentos “não educados” por esses padrões são insuficientes, insalubres e inadequados (tanto do ponto de vista técnico-sanitário quanto do moral), constituindo o que vem sendo nomeado, contemporaneamente, como “comportamentos de risco”. O risco em saúde é representado como uma situação de dano potencial, associado principalmente a fatores individuais. Nesse sentido, “correr risco apresenta um certo caráter definidor de identidades desviantes” 7 (p. 1309), entendendo-se que o risco “estaria na ignorância, fraqueza, falta de interesse no cuidado de si, esse último um imperativo numa sociedade em que se atribui um alto valor à autonomia individual e à competência para o auto-governo” 7 (p. 1309). É nesse contexto discursivo que formas definidas como “certas” e “erradas” de viver são compreendidas como decorrência do domínio ou da ignorância de um certo saber, e a educa- ção, assentada no pressuposto da existência de um sujeito humano potencialmente livre e autônomo, passa a ser concebida e exercitada como processo de instrução (passiva) para o exercício do poder sobre a própria saúde. Esse processo tem como objetivo central a mudança (imediata e unilateral) de comportamentos individuais a partir de decisões informadas sobre a saúde, em um contexto onde se exercita uma forma de comunicação de caráter basicamente cognitivo/racional. Assim, o que se verifica nos processos comunicativos que colocam em movimento os programas e projetos de educação em saúde é a permanência da idéia de que a “falta de saú- de” é um problema possível de ser solucionado, individual ou coletivamente, desde que se disponha de informações técnico-científicas adequadas e/ou da vontade pessoal e política dos sujeitos expostos a determinados agravos à saúde. Mesmo naquelas propostas que buscam ampliar a abrangência dos programas educativos, tal ampliação dá-se no sentido da incorporação de estratégias participativas, nas quais a interação com o repertório sócio-cultural e o seu resgate constituem um recurso de acomodação dos conteúdos técnico-científicos ao universo cultural daqueles a quem se deseja (ou se deve) ensinar. A lógica que se persegue é a da busca de meios mais eficazes para dar conta de objetivos que continuam circunscritos ao universo da higienização e normatização dos comportamentos, como se uma consideração ampliada de sua determinação pudesse gerar uma forma, também ampliada, de prevenção de riscos e adesão a comportamentos saudáveis ainda definidos e legitimados, em primeira instância, pelo conhecimento técnico-científico 4. Continua-se, pois, buscando enriquecer estratégias didáticas tecnicamente informadas pelas “necessidades de saúde” reconhecidas no âmbito das ciências médicas. Esta forma de olhar reforça a delimitação do foco da educação em saúde na epidemiologia do comportamento, pautada em fatores de risco circunscritos ao indivíduo e supostamente passíveis de correção a partir de ações racionais, de responsabilidade de cada pessoa. No entanto, Carvalho 8 argumenta que os chamados “fatores de risco” constituem elementos indissociáveis dos marcos culturais e sociais em que se inscrevem e compõem “situações complexas onde correr risco não é mais externo ao indivíduo, mas se inscreve, com ele, num complexo único de múltiplas dimensões – biológica, social e cultural” 8 (p. 107). Pode-se avançar na discussão dos sentidos complexos do risco recorrendo-se também a autores 9,10 que chamam atenção para o fato de que um comportamento nomeado como “insalubre”, tal como fumar, para voltar ao exemplo com que iniciamos o texto, pode ser visto como parte de uma atitude mais ampla de resistência ou de suporte a condições de vida muito difíceis de determinados grupos sociais. Nesse caso, as tentativas de cooptar esses grupos podem produzir pouco resultado, uma vez que “tanto o adoecer como a exposição a determinados riscos [podem estar constituindo] modos possíveis de permanecer vivo e, por extensão, de levar a vida” 6 (p. 95). Ou seja, é preciso considerar que símbolos de resistência podem forjar identidades grupais e redes de solidariedade, uma situação na qual a resistência pode ser protetora e, ao mesmo tempo, aumentar a susceptibilidade a determinados problemas de saúde. A crítica a essas abordagens educativas centradas na informação para a mudança de comportamentos mostra a necessidade de refletir não só sobre o conteúdo da informação, mas, principalmente, sobre como e por que a informação é comunicada. O desafio central não estaria no aprimoramento de técnicas de transmissão de mensagens, de persuasão ou sedu- ção, nos moldes das estratégias de marketing comercial, mas em rever o pressuposto de que a existência de elementos de informação científica nas mensagens recebidas é necessário e suficiente para aumentar a competência e/ou a liberdade de decisão, uma vez que o que se vê no dia-a-dia das práticas de saúde é que o conhecimento científico é um elemento que passa pela vida das pessoas através de uma espé- cie de filtro de seus próprios saberes gerando um conhecimento diferente 11, ou seja, os grupos sociais, e os indivíduos que os integram realizam uma reconstrução desses saberes amalgamando-os à sua visão de mundo em consonância com suas experiências. Essa compreensão não implica desconsiderar que programas de educação em saúde podem ser, de fato, muito efetivos para prover informações básicas sobre diversos tópicos relacionados à saúde para largos segmentos da população. Também não desconsidera que o resultado, mesmo que insuficiente e limitado, integra o direito a tomar decisões informadas, de modo que experiências de aprendizagem posteriores podem ser beneficiadas com e a partir desses conhecimentos. Também na escola, um cenário emblemático das práticas instituídas no campo da educa- ção em saúde, revisões amplas das experiências educativas realizadas em diferentes realidades permitem constatar que programas focalizados em temas variados como drogas, inclusive álcool e tabaco, práticas sexuais desprotegidas, gravidez na adolescência, nutrição ou trânsito, são muito eficientes em aumentar conhecimentos, têm alguma eficiência em mudar atitudes e, com raras exceções, são ineficazes na mudança de práticas relacionadas à saúde. Esses resultados nos alertam para a necessidade de promover um questionamento profundo dessa permanência da centralidade da mudan- ça de comportamentos nos objetivos da educação em saúde. Torna-se cada vez mais evidente que as mudanças comportamentais são um produto muito raro dos projetos educativos já implantados e, mais do que isso, constata-se que as múltiplas dimensões que interagem nos ambientes onde transcorre a vida tornam muito difícil vincular diretamente as atividades da educação em saúde aos comportamentos que emergem no tempo 4. Estudos como esses têm-nos encaminhado, então, para a necessidade de trabalhar com a noção de que educação envolve o conjunto dos processos pelos quais indivíduos se transformam em sujeitos de uma cultura, reconhecendo que existem muitas e diferentes instâncias e instituições sociais envolvidas com esses processos de educar, algumas delas explicitamente direcionadas para isso, enquanto que em outras esses processos educativos não são tão explícitos e nem mesmo intencionais 12. Cultura, nesse contexto, é tomada como o conjunto de códigos e de sistemas de significação lingüística, por meio dos quais se atribuem sentidos às coisas, sentidos esses que são passíveis de serem compartilhados por um determinado grupo. Ela não é universal, nem está dada de antemão, mas é ativamente produzida e modificada, ou seja, poderíamos pensá-la como o conjunto dos processos pelos quais se produz um certo consenso acerca do mundo em que se vive. Sendo assim, é o partilhamento deste consenso que permite aos diferentes indivíduos se reconhecerem como membros de determinados grupos e não de outros, o que implica, também, entender a cultura como um processo arbitrário, uma vez que cada grupo pode viver de forma diferente ou atribuir um significado diferente a um mesmo fenômeno ou objeto 13. Se direcionarmos esse modo de conceber a educação e a cultura para pensar as formas pelas quais se definem as relações com o corpo, os cuidados que se dispensam a ele, os limites que se estabelecem entre normal e anormal e entre saúde e doença, por exemplo, temos de entender tais saberes e práticas como integrantes do processo de construção desses corpos e desses sujeitos. Ou seja, mesmo que não estejamos, aqui, negando o fato de que corpos humanos e as manifestações dos sujeitos humanos acerca de seus corpos envolvem uma materialidade biológica que se expressa por uma anatomia e uma fisiologia próprias, estamos enfatizando que o corpo e o processo saúdedoença em que ele é inscrito é, ao mesmo tempo, uma construção lingüística e cultural. Nessa direção, corpo, saúde e doença só adquirem determinados sentidos no contexto da cultura e da linguagem em que são compreendidos e experienciados. Assim, a educação em saúde, como parte de um processo de educação mais ampla, passa a ser entendida tanto como uma instância importante de construção e veiculação de conhecimentos e práticas relacionados aos modos como cada cultura concebe o viver de forma saudável e o processo saúde/doença quanto como uma instância de produção de sujeitos e identidades sociais. Que questões perspectivas como essa colocam aos educadores/as em saúde? Em primeiro lugar, desde uma dimensão ética, caberia assumir que a promoção da saú- de e a prevenção de doenças, em última instância, implicam o exercício de determinadas formas de poder, de autoridade e de controle social. Seria preciso admitir, também, que a educação em saúde tem uma dimensão comportamental e imediata, mas não se resume a ela. Haveria necessidade de assumir, ainda, que a busca de alternativas no campo da educação em saúde requer o estabelecimento de objetivos pautados no empenho em compartilhar e submeter à legitimação social os conhecimentos construídos no setor saúde e informados pela ciência, reconhecendo as dimensões contraditórias (e transitórias) dos “comportamentos saudáveis”. Dever-se-ia, pois, considerar que a produção de experiências mais ou menos patogênicas, mais ou menos promotoras de bem-estar está vinculada às relações intersubjetivas que se estabelecem no processo de re-construção de padrões culturais validados socialmente.

Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/csp/v22n6/22.pdf. Acesso em: 30/05/2015.

Imagem disponível em: http://iasdcentraldebrasilia.com.br/necessidade-da-educacao-quanto-saude/. Acesso em: 30/05/2015.

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