segunda-feira, 4 de maio de 2015

ALUNOS QUE NÃO APRENDEM, PROFESSOR QUE NÃO ENSINAM

crianca_reprovacao


Como ensinamos

Algumas vezes o modo como ensinamos é tão distante da realidade, isto é, tão diferente da maneira como as coisas realmente funcionam que não há porque aprender aquilo. E acredite se quiser, nossos alunos sabem disso e na maioria das vezes nós, professores, não sabemos. Posso mencionar, por exemplo, o que aconteceu outro dia em uma das minhas aulas de francês: a professora me deu uma lista de maneiras de como um determinado som é representado ortograficamente em francês. Eu li, dei outros exemplos e tudo parecia correr bem. A aluna - eu - tinha entendido tudo direitinho. Imediatamente depois disso a professora me pediu para ler um texto em voz alta. Adivinhe o que aconteceu. Pude ler perfeitamente bem todas as palavras que já conhecia mas cometi erros de pronúncia em muitas das palavras novas. Isso aconteceu porque eu não poderia ler em voz alta, compreender o significado do texto e ainda pensar nas regras que ela me deu, tudo isso ao mesmo tempo. Algumas partes do processamento da linguagem têm de ser automáticas, não podemos pensar em regras fonéticas, fonológicas e sintáticas quando estamos realmente usando a língua e querendo compreender o significado do texto. Todo professor de língua já passou, pelo menos uma vez, por uma experiência como esta. Ensinou a ‘gramática’ e deu alguns exercícios de fixação (drilling exercises). Feito isso, encontrou muitos erros relacionados àquele ‘ponto gramatical’ na produção oral ou escrita dos alunos. “Meu Deus, o que esses alunos têm na cabeça?” o professor se pergunta desesperado. “Por que eles fazem tudo certo nos exercícios e cometem tantos erros quando produzem um texto?” (É interessante dar uma olhada cuidadosa na palavra drill, usada para se referir a exercícios de fixação. Drill significa prática, repetição, treino militar, condicionamento, furadeira (boring tool), furar (bore), chatear, doutrinar, inculcar. Devemos, então, pensar na concepção de ensinar e aprender que podemos encontrar atrás dessa palavra. Muitos de nós não chama mais os exercícios de drills mas a essência deles continua a mesma nas aulas de língua estrangeira. 

O problema aqui é que ensinamos coisas que não são reais. Estamos tentando trazer à consciência dos alunos algo que precisa ser realizado inconscientemente para funcionar bem. Os alunos precisam saber usar a linguagem do jeito que ela é e, não, saber todas as regras explicitamente. Existem muitas coisas na nossa língua materna que podemos usar mas não podemos explicar. Por que é em São Paulo, em Minas mas no Rio? Uma vez vi alguém perguntar a um falante nativo do inglês porque não se usa do em sentenças afirmativas. O nativo precisou de algum tempo para desistir de pensar e dizer que ele não sabia. Tenho certeza de que nenhum professor de inglês, principalmente os não nativos, precisaria de mais de alguns poucos minutos para dar uma boa resposta a essa pergunta. Explicar isso é fácil para nós, professores, porque nos preocupamos com as regras. A diferença entre o falante nativo e o professor é que o primeiro sabe como usar a língua e não costuma pensar em como as coisas funcionam, ele apenas a usa e ela funciona. O professor, por outro lado, além de saber como usar a língua, sabe, acima de tudo, como ela funciona e, na ansiedade de ensinar, tende a transformar a aprendizagem da língua na aprendizagem de um monte de regras. Não estou dizendo que temos de jogar todas as regras fora. Eu realmente acredito que as regras algumas vezes nos ajudam a organizar o conhecimento da língua, mas elas não deveriam ser o mais importante na aprendizagem daquela. Saber uma língua significa saber como usar a língua e, para usar a língua fluentemente temos de pensar no significado e deixar a forma sair automaticamente. Se tivermos de gastar muito dos nossos recursos cognitivos pensando sobre a forma, não sobrará nenhum recurso para lidar com o significado. Daí se pode concluir que a comunicação não se efetivará. Com a abordagem comunicativa, essa obsessão pela forma diminuiu, mas o que se percebe é que muitos professores estão perdidos, não sabem o que fazer agora, e não raro voltam para os exercícios estruturais ou ficam presos ao livro didático. Sabemos que esses livros nem sempre servem aos interesses e necessidades dos alunos e que eles raramente trazem atividades realmente comunicativas. 

O que ensinamos

 Se perguntarmos a qualquer professor de língua o que ele precisa ensinar, ele vai prontamente responder que tem de desenvolver as quatro habilidades nos seus alunos: a capacidade de ler, escrever, falar e ouvir. E se perguntarmos a ele o que exatamente cada uma dessas habilidades significa, ele provavelmente não saberá explicar. Isso acontece porque nós, professores, não sabemos, por exemplo, o que é leitura, quais as habilidades cognitivas envolvidas nessa habilidade, que estratégias usamos quando lemos e que fatores podem influenciar a leitura. 

Isso não é nossa culpa. Algumas vezes realmente não percebemos que tantos fatores estão envolvidos em uma tarefa ‘tão simples’ como a leitura (professores de língua deveriam estar sempre aprendendo outras línguas para constantemente lembrar como isso é difícil). Além disso, muitos professores não têm acesso aos resultados de pesquisas mais recentes. Hoje em dia isso é fácil de resolver. Tesols, Laurels e outras associações podem ser de grande ajuda e também podemos contar com as bibliotecas e a Rainha Internet, na qual podemos encontrar discussões sobre qualquer assunto em que alguém puder pensar. (Há também programas de desenvolvimento e aprimoramento de professores em algumas escolas de língua como MAI, ICBEU e outras). Podemos também culpar os livros didáticos porque a maioria deles não se interessa muito pelas pesquisas. Eles usam o que está na moda e há muito mais de marketing do que verdadeiras modificações nos livros. Muitas vezes tudo que eles fazem é mudar o nome de coisas antigas (fora de moda) e apresentá-las como novidades. Para a maioria dos livros, controlar sintaxe e vocabulário é suficiente. Não vou me estender nessa conversa sobre os livros didáticos porque esse assunto merece uma conversa muito longa e, além disso, esse não é o ponto específico sobre o qual devo falar aqui. Eu só gostaria muito que os professores observassem bem os livros que usam para checar se eles realmente são o que dizem ser, para checar também se eles propõem atividades e situações nas quais os alunos vão realmente usar a linguagem em vez de apenas memorizar regras e diálogos, para tentar saber com que concepção das quatro habilidades ele trabalha, entre muitas outras coisas. Agora vou dar um exemplo da importância de sabermos a respeito dos fatores e processos envolvidos em cada habilidade para a situação de ensino-aprendizagem. Durante os últimos anos deixamos as atividades de escrita de lado, para o alívio dos professores. A produção de textos escritos foi deixada de lado por muitas razões. Uma delas é metodológica: “a começar pelo método audio-visual e durante a abordagem comunicativa, demos muita importância à expressão oral e a escrita foi deixada a parte. Isso aconteceu porque nas abordagens anteriores a essas foi dada muita atenção para a parte escrita. Numa tentativa de compensar isso, colocamos muito peso no outro lado da balança. Agora precisamos chegar ao equilíbrio” (COSCARELLI,1994).1 Outra razão que podemos mencionar é pessoal. “Muitos de nós não se sente confortável quando se trata de escrever, nem mesmo na nossa língua materna, e isso se deve a diferentes motivos: (1) escrever requer muito trabalho mental e nós somos um pouco preguiçosos; (2) temos medo de errar e isso aumenta quando sabemos que esses erros vão ficar registrados numa folha de papel assinada por nós; (3) o modo como fomos ensinados a escrever não foi muito adequado. Na escola tínhamos poucos minutos para escrever a respeito de assuntos sobre os quais não queríamos falar ou sobre os quais nada tínhamos para falar, para alguém que só estava interessado em encontrar muitos erros para corrigir. E o esforço que fizemos durante a escrita, os assuntos que nos interessavam e as experiências que realmente gostaríamos de compartilhar com nossos colegas? Ninguém ligava para elas! Os professores geralmente liam nossos textos tão concentrados em encontrar erros de ortografia e sintaxe que acabavam não ligando para a estrutura dos textos e algumas vezes nem para o significado deles. Nós realmente passamos por momentos difíceis na escola” (COSCARELLI, 1994, op. cit.). Então, como não nos sentimos a vontade para escrever e pensamos que não somos bons nisso, decidimos, na posição de professores, deixar a escrita de lado nas nossas aulas. Podemos apresentar ainda outra razão por que deixamos a escrita a parte, que pode ser vista como uma conseqüência da terceira apresentada acima: ninguém nos ensinou a redigir um bom texto. Estamos lutando com isso até hoje e ainda sentimos que não sabemos escrever bem. A única maneira de resolver esse problema é sabendo como a escrita funciona. Nós, professores, precisamos saber pelo menos que existem condições em que a escrita normalmente acontece. Só se escreve quando existe um propósito para isso, quando há um recebedor (mesmo que seja o próprio autor), e quando há o que escrever (informação nova). Precisamos também saber que escrever envolve a geração, seleção e organização de idéias. Isso significa que escrever requer a produção de um rascunho que deve ser revisto e reescrito mais de uma vez. Além disso, precisamos saber como escrever um parágrafo, precisamos saber que um texto é diferente de uma lista de sentenças e precisamos saber quais são os elementos lingüísticos que fazem essa diferença (elementos coesivos, itens lexicais, advérbios de seqüência, elementos dêiticos, anáforas, catáforas, elipses etc.) As questões relativas aos ‘erros’ são outro ponto extremamente importante que todos os professores precisam conhecer muito bem para saber o que fazer com eles. Devemos pensar nos erros dos nossos alunos não como pecados mas como uma fonte muito preciosa de informação sobre o processo de aprendizagem. 

O mesmo acontece com relação às outras habilidades. O professor deve saber o que está envolvido em cada uma delas a fim de envolver os alunos em situações que vão possibilitar a eles desenvolver seus conhecimentos da língua. Isso não significa que encontramos todas as respostas na teoria, mas pelo menos teremos uma concepção mais clara do que cada habilidade é e dos fatores que podem influenciá-las. Com isso em mente será mais fácil ajudar nossos alunos a encontrar seu próprio caminho nessa ainda nebulosa aventura que é aprender uma língua estrangeira. Voltemos então à pergunta maliciosa: os alunos aprendem o que os professores ensinam? À vezes pode parecer que não estamos ensinando porque pensamos que temos de ensinar a língua, isto é, suas estruturas e vocabulário; mas na verdade, o que temos de pensar é que não estamos apenas ensinando a língua, estamos ensinando também, e talvez principalmente, os alunos a aprenderem outra língua. Portanto, podemos dizer que os alunos estão aprendendo o que estamos ensinando: estamos ensinando a eles a aprender uma língua. Ensinar, na minha opinião, é criar nos alunos a necessidade de saber alguma coisa, criar a necessidade de aprender e desenvolver neles a confiança de que eles podem aprender, e convencê-los de que eles são responsáveis pelo próprio aprendizado. Criando essa atmosfera, podemos ajudá-los a ser aprendizes autônomos. Assim, cada um poderá descobrir qual é, para ele, a melhor maneira de aprender uma língua. Foi tomando como base esses conceitos de ensinar e aprender que pude concluir que ensinamos e que nossos alunos aprendem o que ensinamos. Devo acrescentar que esse é um assunto sobre o qual deveremos passar o resto de nossas vidas pensando. 

Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/carlacoscarelli/publicacoes/SEMGERPO.pdf. Acesso em: 04/05/2015.

Imagem disponível em: http://bolsauniversitaria.com.br/blog/2012/05/25/ainda-nao-sabemos-o-que-fazer-com-alunos-que-nao-aprendem/. Acesso em: 04/05/2015.

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